CLUBE DE REVISTA: Aprofundando o estudo WEAN SAFE - A epidemiologia do desmame.
Por: Davi Mota Alcantara, Médico - 16/06/2023 17:42
Neste tópico, nós vamos aprofundar a nossa análise do estudo WEAN SAFE, um grande estudo observacional, multicêntrico, prospectivo de coorte, realizado em 481 Unidades de Terapia Intensiva (UTI) em 50 países, incluindo o Brasil (1).
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Metodologia e população:
De outubro/2017 a junho/2018, 10232 pacientes foram avaliados para elegibilidade e 4363 foram excluídos, sendo a grande maioria por não atingirem 48h de Ventilação Mecânica (VM). 5869 participantes integraram o estudo.
A população estudada foi de pacientes adultos (maiores do que 16 anos) internados em UTI com pelo menos mais de 48 horas em VM. A partir daí, o processo de desmame, em específico, foi acompanhado de perto a fim de avaliar os desfechos:
Primário: identificar a proporção de pacientes em VM por pelo menos 2 dias desmamados com sucesso no dia 90.
Secundários: proporção de pacientes submetidos a uma tentativa de separação do ventilador; taxa e momento da traqueostomia; intervalos de tempo entre atingir os critérios de elegibilidade de desmame e a primeira tentativa de separação do ventilador; fatores de risco para atraso para o início do desmame e para a falha no desmame; mortalidade na UTI e no hospital; descrição da população conforme a classificação WIND.
🧐 Peculiaridades do estudo:
Uma das grandes questões do estudo tem relação com as definições de elegibilidade para o desmame, conforme definido pelos autores. Vamos relembrá-las aqui:
Critérios de elegibilidade para o desmame (modificado de Boles et al)(2):
Fração inspirada de oxigênio (FiO2) menor do que 50%;
Pressão positiva ao final da expiração (PEEP) menor do que 10;
Uso de nenhum ou baixa dose de vasopressores;
Não estar sob agente paralisante.
Os autores decidiram não adicionar o nível de consciência porque este seria mais um critério de extubação e também porque o manejo da sedação é um potencial fator modificável relacionado à duração da VM invasiva. Esta foi uma decisão metodológica interessante e válida, na nossa opinião.
⚠️No entanto, a limitação mais importante é a seguinte: os critérios acima descritos diferem daqueles das principais fontes adotadas como referência para classificar o paciente como potencialmente apto ao teste de respiração espontânea (TRE), incluindo a mesma adotada como referência no estudo (2). Normalmente a FiO2 utilizada na prática, para avaliar a elegibilidade do teste de respiração espontânea do paciente, é de 40% ou menos e a PEEP de 8 ou menos ou então 5 ou menos.
Isso significa que as definições utilizadas no estudo adicionaram um viés importante, com tendência a aumentar artificialmente a quantidade de pacientes com atraso no desmame.
Os autores foram questionados sobre o tema (3) e responderam, mas não explicaram por que escolheram esta definição (4), ao invés de aderir àquela mais universalmente utilizada.
Uma dúvida importante é se a definição foi escolhida antes ou após a obtenção dos dados do estudo (ou sejam, foi fruto de uma análise post-hoc?), mas isso não está claro no texto do artigo. Além disso, tal definição (ou qualquer outra sobre elegibilidade para o desmame) não está presente no registro do estudo (5) ou no seu protocolo original.
Uma maneira interessante de resolver essa questão seria analisar novamente os dados sobre atraso no desmame, mas utilizando-se a definição habitual, se eles dispuserem de tais dados.
Como a dúvida permanece, recomendamos cautela em relação aos resultados relacionados a atraso no desmame, uma vez que os números encontrados tendem a estar mais distantes da prática clínica convencional estabelecida ou mesmo da verdade que buscamos obter e podem não refletir o cenário da sua UTI.
Exatamente por isso consideramos pouco os resultados relacionados a atraso no desmame, pois os vieses envolvidos podem nos distanciar da realidade.
✅ Análise dos resultados:
62% dos pacientes eram homens; 66% tinham pelo menos 1 comorbidade relevante.
77% foram submetidos a pelo menos 1 tentativa de separação do ventilador e 65% obtiveram sucesso no desmame. Ou seja, a maioria dos pacientes (84%) submetidos a pelo menos 1 tentativa de separação obteve sucesso. Ainda assim, destes, 11% morreram (na UTI ou após alta da UTI).
A mortalidade dos pacientes foi elevada. 32% morreram na UTI e, destes, 64% morreram sem nenhuma tentativa de desmame, 32% foram submetidos a pelo menos 1 tentativa, mas não obtiveram sucesso e 5% obtiveram sucesso no desmame. Ao todo, 38,3% dos pacientes morreram no hospital e, destes, 17% haviam recebido alta da UTI.
É claro que essa média pode não refletir o que você pode esperar na epidemiologia da sua UTI, especialmente por se tratar de um estudo heterogêneo, cuja média inclui pacientes de cirurgias eletivas, trauma, vítimas de parada cardíaca etc. Portanto sugerimos que os nossos assinantes avaliem o próprio artigo para verificar os números correspondentes ao tipo de paciente da sua prática no dia a dia.
Sobre a elegibilidade para o desmame, quase 92% dos pacientes atingiram os critérios de elegibilidade definidos pelos autores e a mediana de tempo para isso foi de 3 dias. É importante lembrar que tais critérios têm alta probabilidade de não refletirem a sua prática clínica, tanto pelos altos valores de FiO2 e PEEP quanto pela ausência de outros parâmetros importantes. Ou seja: é possível que a proporção de pacientes que de fato tenham atingido critérios de elegibilidade para um TRE seja significativamente menor.
Dos pacientes submetidos a pelo menos 1 tentativa de separação, a mediana de tempo desde os critérios de elegibilidade até a primeira tentativa foi de 1 dia (IQR 0 - 4), sendo que 22% teve um atraso de 5 dias ou mais. A primeira tentativa ocorreu em uma mediana de 5 dias (IQR 4 - 8) após a intubação. 16% destes pacientes tiveram falha no desmame, sendo que 12,2% morreram durante o processo e o restante foi transferido.
65% dos pacientes tiveram um desmame curto, 10% tiveram desmame intermediário e 10%, desmame prolongado. 20% dos pacientes foram submetidos a traqueostomia em algum momento do estudo.
A primeira tentativa de separação foi um TRE em 66% dos pacientes, extubação direta em 20,5% e TRE na traqueostomia em 13,5%. Dentre os pacientes desmamados, 31% não passaram formalmente por um TRE.
Fatores independentemente associados a atraso para a primeira tentativa de separação foram: a) dentre os fatores demográficos, fragilidade, admissão por trauma e admissão por eventos neurológicos não-traumáticos; parada cardíaca foi associada a menor risco de atraso; b) severidade de doença crítica, avaliado pelo escore SOFA; c) dentre os fatores potencialmente modificáveis, uso prévio de bloqueio neuromuscular e a presença de níveis de sedação moderado ou profundo no primeiro dia em que se atingiu os critérios de elegibilidade definidos pelos autores. Os níveis de sedação se mantiveram como fatores de risco importantes mesmo após análises de sensibilidade.
✍ Fatores independentemente associados a falha no desmame: a) dentre os fatores demográficos, idade avançada, estado imunocomprometido e fragilidade; b) dentre os fatores de severidade da doença, a gravidade geral, medida através do SOFA não-neurológico, parada cardíaca e evento neurológico não traumático como causa da admissão, limitações de cuidado pré-existentes e nível de disfunção respiratória (FR, razão P/F) e de assistência ventilatória (Driving pressure, PEEP) no momento da primeira tentativa de separação; c) dentre os fatores potencialmente modificáveis, observou-se a presença de sedação profunda no momento da primeira tentativa e o intervalo de tempo entre o preenchimento dos critérios de elegibilidade para o desmame até a primeira tentativa de separação. Como fator associado a sucesso no desmame, observou-se insuficiência cardíaca como causa da admissão. Os resultados permaneceram semelhantes após análise de sensibilidade, em especial sedação no momento de aptidão para o desmame.
As figuras a seguir mostram os resultados da análise multivariável em Odds ratio e intervalos de confiança:
Figura 1: Variáveis associadas a atraso no desmame
Figura 2: Variáveis associadas a falha no desmame
✍ Conclusão:
Consideramos este um importante estudo de Coorte, porque: a) Conseguiu avaliar bem a epidemiologia do processo de desmame em 50 países; b) Nos oferece um mapeamento epidemiológico e prognóstico para a nossa própria prática sobre pacientes em VM por mais do que 48 horas nas mais variadas condições; c) Nos oferece hipóteses a serem testadas em futuros ensaios clínicos sobre o que pode interferir, positivamente ou negativamente, no processo de desmame, especialmente em relação aos fatores potencialmente modificáveis.
👉 Recomendamos aos nossos assinantes que avaliem por conta própria os resultados relacionados a causas específicas de intubação e a condições semelhantes às dos seus paicentes no dia a dia, para que os dados epiemiológicos realmente tenham valor prático para você.
Como se trata de estudo observacional, não devemos aprofundar nas conjecturas de causalidades, portanto é importante notar que as associações encontradas podem refletir simplesmente efeitos confundidores. Ou seja, os mesmos elementos que levam à necessidade de sedação profunda também podem levar à demora (em aspectos não mensurados no estudo) em se realizar a primeira tentativa de separação do ventilador. Da mesma forma, os mesmos fatores, não mensurados, que levam a atraso (conforme definido pelos autores) no início do desmame também poderiam estar causando desmame prolongado ou falha no desmame.
✍ Como pontos chaves desta análise mais aprofundada, destacamos os seguintes:
Elementos associados a possível atraso no desmame: fragilidade, admissão por trauma, evento neurológico não traumático, gravidade da doença. Independente do atraso, é de se esperar intubação mais prolongada nestes pacientes.
Elementos associados a falha no desmame: idade, imunocomprometimento, fragilidade, parada cardíaca, evento neurológico não-traumático, gravidade da doença; parada cardíaca e evento neurológico não traumático como causa da admissão; limitações de cuidado pré-existentes e nível de disfunção respiratória (FR, razão P/F) e de assistência ventilatória (Driving pressure, PEEP) no momento da primeira tentativa de separação. Ou seja: em pacientes com este perfil, deve-se esperar maior probabilidade de desmame prolongado.
Sedação mais elevada no momento da primeira tentativa de separação esteve associado a possível atraso no desmame e a falha no desmame. Estamos de acordo com os autores em relação a necessidade de atenção especial aos níveis de sedação, a fim de não prolongar desnecessariamente o suporte ventilatório em um paciente.
🤓 Xlunger, o que você achou desta nossa análise? Se tem algum comentário a fazer ou se tem interesse em mais análises aprofundadas dos estudos, comente nesta postagem. É um prazer ouvi-los.
Obs.: O artigo foi gentilmente cedido pelo Dr John Laffey, um dos autores principais, a pedido, por email, da nossa equipe. Fica aqui o nosso agradecimento.
Referências:
Pham T, Heunks L, Bellani G, et al. Weaning from mechanical ventilation in intensive care units across 50 countries (WEAN SAFE): a multicentre, prospective, observational cohort study [published correction appears in Lancet Respir Med. 2023 Mar;11(3):e25]. Lancet Respir Med. 2023;11(5):465-476. doi:10.1016/S2213-2600(22)00449-0
Boles JM, Bion J, Connors A, et al. Weaning from mechanical ventilation. Eur Respir J. 2007;29(5):1033-1056. doi:10.1183/09031936.00010206
Cuyas CS, Fernández RF. WEAN SAFE and the definition of the first separation attempt. Lancet Respir Med. 2023;11(5):e43. doi:10.1016/S2213-2600(23)00051-6
Pham T, Heunks L, Bellani G, Brochard L, Laffey J; WEAN SAFE Investigators. WEAN SAFE and the definition of the first separation attempt - Authors' reply. Lancet Respir Med. 2023;11(5):e44. doi:10.1016/S2213-2600(23)00089-9
https://clinicaltrials.gov/ct2/show/record/NCT03255109
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